
A apresentação da atriz e tecnóloga Eline Van der Velden sobre sua personagem digital Tilly Norwood pegou fogo nas últimas semanas. Ela mostrou no Summit de Zurique como sua equipe desenvolveu a “atriz” em um estúdio próprio de profissionais de Inteligência Artificial, o Xicoia, após anos de trabalho na Particle6. A ideia parecia discreta, mas viralizou rápido, com reações de todo lado e debates acalorados sobre o lugar da IA no mercado audiovisual.
O barulho começou quando Eline contou que já conversava com agentes para representar Tilly no mercado. A revelação puxou uma enxurrada de críticas em Hollywood, declarações de sindicatos e a posição de agências que não desejam trabalhar com “atores” de IA.
Nomes como Whoopi Goldberg, Emily Blunt e Natasha Lyonne expressaram indignação, enquanto Ryan Reynolds tirou sarro do tema em um anúncio recente.
Como a criadora enxerga a IA no entretenimento
Eline defende que há espaço para três “gêneros” bem definidos: animação, live-action tradicional e um gênero de IA.
“Tilly sempre pertenceu ao gênero de IA e é lá que ela deve ficar”, disse a criadora ao Deadline. Segundo ela, a Particle6 quer apoiar produções com atores de carne e osso, reduzindo custos de cenas específicas, além de cortar pegada de carbono e elevar a segurança em certos trechos. Já a Xicoia seria a casa dos projetos 100% voltados ao universo de IA.
A criadora também afirma que não pretende substituir intérpretes humanos. “Sinto empatia pelo receio dos atores. Não foi nossa intenção tirar trabalho de ninguém”, explicou.
Para Eline, a discussão mais urgente passa por regras claras e transparência, com avisos explícitos quando um filme usar ferramentas de IA, algo nos moldes de créditos técnicos.
A “próxima Scarlett Johansson”

A ideia de assinar com um agente para Tilly não teria surgido do nada. Eline lembrou que uma personagem CGI, Lil Miquela, fechou com uma grande agência em 2020.
O ponto, segundo ela, é que a tecnologia evoluiu e Tilly se aproxima mais de rostos reais. “Quando falamos em ‘próxima Scarlett Johansson’, queríamos dizer do gênero de IA”, disse. O plano passa por comerciais, marcas e produções próprias desse novo território digital.
Mesmo com as reações negativas, Eline garante que as conversas seguem com diversas agências. “Fomos inundados por contatos de roteiristas, diretores e atores, inclusive vencedores do Oscar, interessados em explorar esse espaço”, relatou ao Deadline.
Como Tilly foi criada

A equipe trabalhou por cerca de seis meses em iterações de design e testes com público, ajustando texto, aparência e pequenos detalhes como sardas e acabamentos de pele. “Queríamos um visual super realista para mostrar onde a tecnologia já chegou”, explicou Eline.
Segundo ela, 15 profissionais participaram do processo, com várias ferramentas de linguagem e imagem ao longo do trabalho.
A escolha por uma personagem britânica se conecta à trajetória pessoal da criadora e à ambição de posicionar o Reino Unido como polo desse novo setor. Eline reforça que não usou semelhança de ninguém e que a equipe prezou por um processo ético e transparente.
A Particle6 quer apoiar produções tradicionais em cenas pontuais, o que pode destravar projetos presos por orçamento. “Muita gente tem usado IA em sotaques, trechos de ação e reconstruções específicas. O importante é declarar o uso”, afirmou. A expectativa é que cada vez mais filmes adotem pequenos trechos com IA, sem eliminar o trabalho humano.
A criadora também defende compensação explícita para “gêmeos digitais” de artistas e proteção jurídica para personagens gerados por computador. “Ninguém deve ter a imagem usada sem consentimento e pagamento justo”.
E os empregos no setor criativo?

A discussão não é simples. Há profissionais preocupados com cortes e reestruturações. Eline reconhece o cenário, mas vê novas funções e novas rotas para quem cria histórias, filma e pós-produz.
“O espaço de IA precisa de contadores de histórias. Queremos treinar essa força de trabalho e já conversamos com órgãos como o ScreenSkills”, contou. Ela citou exemplos de outras áreas, nas quais a tecnologia não eliminou profissões, mas ampliou a demanda por especialistas que supervisionam e integram as ferramentas.
O plano é lançar cerca de 40 personagens de perfis diversos para compor um elenco completo desse “gênero de IA”. Alguns já estariam em desenvolvimento, ainda sem data de estreia. “Leva tempo até ficarmos satisfeitos com cada personagem”, explicou.
Enquanto isso, Tilly segue no centro do debate. Para sua criadora, ela só faz sentido no espaço de IA, com crédito claro, ética e colaboração com profissionais humanos. “A tecnologia veio para ficar. Cabe ao setor criativo definir as regras de uso, não o contrário”, disse Eline.